DESMISTIFICANDO O AÇO DOS “KATANÁS” ANTIGOS

Desmitificando o Aço dos
“Katanás” Antigos

Explicando diferenças técnicas e históricas muito importantes

_____________________________________________________Laércio Gazinhato

Nos últimos anos, com o crescente interesse em espadas japonesas, muita bobagem tem sido dita e escrita sobre pretensas “virtudes mágicas” do aço empregado em lâminas japonesas antigas.

Lâminas japonesas antigas têm grande valor artístico, histórico e como itens colecionáveis, algumas sendo lindos exemplos de esforço, perícia e habilidade de seus forjadores e polidores, mas em verdade e de pontos de vista estritamente técnicos, seu aço não é algo que, NEM DE MUITO LONGE, pudesse ser comparado a um bom aço-carbono moderno e para ciência disto basta sabermos detalhes de sua dificil obtenção, tratamento e acabamento. E é justamente por essas dificuldades e pela maestria de seus mestres-forjadores que uma boa lâmina japonesa antiga DEVE SER admirada, reverenciada e muito valorizada.

Aços modernos de boa procedência são 99,99% puros, com distribuição uniforme de carbono e ainda com a adição de outros componentes que os melhoram (veja “Guia de Aços…”). Quando laminados a quente, seu grão é adequadamente diminuído, na maioria dos casos isto já sendo suficiente para o uso em Cutelaria, evitando-se forjamento desnecessário. Assim, em termos técnicos, poderia se afirmar – COM TODA A CERTEZA – que aços modernos de boa procedência e com o adequado teor de carbono para o fim a que se destinam são, no mínimo, 100 (CEM) VEZES MELHORES QUE OS MELHORES de séculos passados.

Com o ÚNICO intuito de acabar com, ou pelo menos minimizar, os vários mitos que se criaram em relação ao aço das lâminas japonesas antigas, apresento abaixo alguns FATOS TÉCNICOS E HISTÓRICOS, bem como recomendo fortemente a leitura dos livros citados ao final deste artigo (*).

  • Desde o Japão feudal e até o final da Era Meiji (1868-1912), salvo raríssimas importações de época, o minério de ferro considerado adequado para o aço de lâminas era obtido através de sua extração de uma areia de rio denominada satetsu, de característica cor negra. Por esse método de extração, se obtinha apenas cerca de 1% de minério de ferro, e ainda de forma extremamente impura para compor aço, pois era – em realidade – óxido de ferro (Fe2O3);
  • Desse minério de ferro era necessário retirar o oxigênio e a ele acrescentar carbono (o que ocorria através de sua fusão usando carvão de pinho), resultando no tamahagane, uma massa esponjosa de aço, este ainda impuro e com conteúdo variado de carbono em diversos pontos;
  • No Japão daquela época, a única forma (*1) então conhecida para purificar e homogeneizar o tamahagane era através do forjamento e dobradura. Assim, pelo aquecimento a 1.300ºC, pelo martelamento e dobradura, boa parte das impurezas era expelida e os cristais de carbono tornavam-se menores, propiciando sua melhor distribuição, até chegar-se a um aço de grão mais fino e conteúdo final (após o completo forjamento da lâmina) de cerca de 0,7% de carbono;
  • Naqueles tempos e por parte dos forjadores japoneses de lâminas havia tamanho desespero por ferro e aço já prontos que era costume o total reaproveitamento de todo e qualquer item que contivesse esses metais; isto pode ser visto, em fotos e de forma descritiva em inglês, no “link” abaixo, que também mostra detalhadamente todas as etapas do demorado processo de purificação e forjamento:

http://www.jpsword.com/files/swordmaking/sword-making.html

  • hamon, ou linha/padrão de têmpera, visto nas lâminas japonesas originais é, APENAS E TÃO SOMENTE, produto de um tipo de tratamento térmico que usa argila para isolar determinada área do calor, com o intuito de obter TÊMPERA SELETIVA. Assim, ele NADA tem de mágico ou de melhor em relação a outros tratamentos térmicos consagrados e quando bem feitos, quer antigos ou modernos;
  • Igualmente, o fato de as antigas lâminas japonesas terem um núcleo de aço mais mole NÃO É garantia de adequada e/ou absoluta flexibilidade, isto na época sendo usado apenas como um simples recurso para tal, de vez que não se tinham nem aços 99,99% puros e nem tampouco processos plenamente controláveis de elevação e manutenção de temperatura, tanto no momento da têmpera quanto do revenimento;
  • Mesmo usando tamahagane, forjando perfeitamente e dando o tratamento térmico adequado, uma lâmina assim constituída SOMENTE revelará a textura do aço e o hamon com o trabalho do togishi, ou artista-polidor, o qual utiliza técnicas apuradas, aprendidas ao longo de anos, e materiais próprios, esta tarefa sendo, obviamente, demorada e cara (veja artigo “Polimento de Lâminas Japonesas”, em nossa página de “Textos Selecionados”);

  • Aqueles que conhecem, viram e analisaram
    em detalhes um número razoável de lâminas japonesas antigas sabem que a ocorrência de kizus (falhas ou defeitos, a maioria fissuras de forjamento) é mais comum e em maior número do que supõem os leigos, existindo, embora às vezes em grau mínimo, em cerca de 80% dos exemplares conhecidos;

  • Guntôs (espadas militares japonesas, 99% delas com lâminas industriais SEM têmpera seletiva) cansaram de cortar cabeças quando os japoneses invadiram a China entre 1931 e 1945, muitas dessas execuções estando documentadas em fotos e filmes;
  • Kunio Oda, o mais famoso “espadeiro” japonês radicado no Brasil, usou, em todas as cerca de 350 lâminas que produziu, aço-carbono comercial e NÃO usava o método do núcleo de aço mais mole, confeccionando suas lâminas na técnica “maru-gitae”, utilizando barra de um só aço, como aliás foi também muito feito desde o Japão Feudal. A maioria de suas espadas era destinada a praticantes de kendô e foram realmente usadas. Até o momento, este autor já teve em mãos cerca de 50 criações desse “espadeiro” e apenas 2 (duas) das lâminas apresentavam problemas: uma estava entortada (e com adequada restauração foi desentortada) e a outra estava partida. Idem, idem para as criações de Tomizo Ishida, outro “espadeiro” japonês radicado em nosso país (veja artigos sobre eles em nossa página de “Textos Selecionados”);
  • Finalmente, citando ipsi literis o famoso Yoshindo Yoshihara, considerado o maior “espadeiro” japonês da atualidade: “O aço moderno apenas não tem a mesma textura ou aparência daquele das velhas espadas, e ninguém parece saber porque…”. Atenção especial deve ser dada ao uso da palavra apenas e ao fato de que esse “espadeiro” ainda é um dos poucos que utiliza o caríssimo tamahagane moderno em suas criações e então sabe muito bem o que está informando!!!

 

(*) A maioria das informações constantes deste texto foi extraída das seguintes fontes:

“Metalografia dos Produtos Siderúrgicos Comuns”, Hubertus Colpaert, IPT-Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo/Editora Edgard Blücher Ltda., ed. 1974

“Aços e Ferros Fundidos”, Vicente Chiaverini, Associação Brasileira de Metais, ed. 1982

“The Japanese Sword”, Kanzan Satô, Kodansha International, ed. 1983

“The Craft of the Japanese Sword”, Leon e Hiroko Kapp/Yoshindo Yoshihara, Kodansha International, ed. 1987

“The Connoisseur’s Book of Japanese Swords” , Nakayama Kokan/Kenji Mishina, Kodansha International, ed. 1996

“Mino-tô – Swords & Swordsmiths of Mino Province”, Malcolm E. Cox, SUS Publishing Co., ed. 2000

(*1) O elemento manganês, em têrmos modernos essencial para a adequada retirada de oxigênio dos aços, evitando a formação de óxidos indesejáveis, foi isolado pelo alemão Johann Gottlieb Gahn em 1774, mas apenas no início do século 19 e no Ocidente, começou a ser efetivamente usado para essa finalidade. 

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