Lâminas de Yoshisuke Oura |
O pioneiro “espadeiro” japonês do Brasil
_____________________________________________________Laércio Gazinhato
Yoshisuke Oura (11/04/1905 – 15/06/2000) nasceu em Miyagi (antigas províncias de Rikuzen e Iwaki), descendente de uma família de “espadeiros” japoneses (na época de seu nascimento já com 500 anos de tradição nessa atividade) e no Brasil tornou-se o pioneiro na produção comercial de lâminas japonesas.
Devido a proibição do uso de espadas que ocorreu no Japão em 1876, desde o final do século 19 os forjadores da família Oura (como os de muitas outras) dedicavam-se exclusivamente à produção de instrumentos agrícolas passando aos jovens toda a técnica ancestral que dominavam, inclusive aquelas relativas à confecção de lâminas.
Desde os anos iniciais de sua adolescência o jovem Oura fascinou-se por espadas, “kendô” e caça, tendo produzido suas primeiras lâminas com a ajuda do pai, como ditava a antiga tradição familiar. Aos 26 anos, enquanto caçava, uma ursa o atacou violentamente e no confronto Oura foi duramente ferido, tendo perdido grande parte da visão no olho direito e boa parte do músculo de trás do braço esquerdo.
Já casado e com o filho de 8 anos Haruo, aos 31 anos Oura decidiu vir para o Brasil, tendo aqui chegado em 1936, sendo contratado inicialmente para trabalhar na lavoura da Fazenda Graminhas, situada entre as cidades de São Simão e Cravinhos, no Interior paulista. No ano seguinte, Yoshisuke tornou-se ferreiro da fazenda, sendo um dos responsáveis pela fabricação e manutenção dos implementos agrícolas lá usados.
Esta foto do início da década de 1940 mostra Oura (3º da esq. p/ a dir.)
ao lado de campeões nacionais de “kendô”.
Foi na Fazenda Graminhas que, incentivado por compatriotas que lá trabalhavam, Yoshisuke Oura produziu sua primeira espada em solo brasileiro, a qual foi presenteada ao vencedor do campeonato brasileiro de (na época) “jiu-kendô” de 1938.
Em setembro do ano seguinte, Yoshisuke Oura mudou-se para a cidade de Suzano, distante cerca de 40 km do centro de São Paulo, e instalou uma oficina própria para a produção de espadas, iniciando também uma forte relação de incentivo e apoio à prática de “kendô” em nosso país, esforço que perduraria por mais de 60 anos.
Inicialmente, Yoshisuke tinha como ajudante nos trabalhos de forja sua esposa, Dona Natsu (mesmo no Japão, quando o “espadeiro” não contava com a ajuda do pai ou de irmãos, era ela que desempenhava essa função), mas o filho Haruo Oura já a partir dos 14 anos de idade seria companheiro e assistente do pai na produção de lâminas e a ele quero – de público – muito agradecer as informações prestadas.
PRODUÇÃO
Instalado numa já florescente colônia nipônica e dominando as antigas artes japonesas da forjaria do aço, Oura atendia com naturalidade os primeiros pedidos de lâminas, não imaginando que devido ao início da 2a. Guerra Mundial sua atividade de “espadeiro” havia se tornado proibida no Brasil. Denunciado por vizinhos, ele foi preso em 1942, tendo algumas lâminas de espadas apreendidas e sendo mandado para as instalações da Imigração no bairro do Brás, em São Paulo, onde permaneceu detido por cerca de 60 dias.
Terminado o processo, Oura foi libertado e voltou para Suzano, passando a produzir exclusivamente instrumentos agrícolas. Em seu tempo livre dedicou-se a participar de encenações do teatro Kagurashi promovidas pela colônia.
Com o final da 2a. Guerra Mundial e os novos tempos de paz, a oficina de instrumentos agrícolas já está plenamente estabelecida e, devido ao seu antigo e profundo envolvimento com o “kendô”, em 1948 Oura reiniciou a produção de lâminas, como sempre contando com a ajuda do filho Haruo. Em seu reinício de atividades, Oura adotou o nome artístico de “Sukemune” (originalmente um mestre “espadeiro” de grande fama da província de Bizen, ativo no ano de 1199, posteriormente existindo outros com esse nome). Um de seus principais clientes neste final da década de 1940 foi o Sr. Sakane, então Consul Geral do Japão no Brasil.
Esta foto de outubro de 1941 mostra o “espadeiro” Oura na forja
de sua oficina de Suzano (SP). Seu filho Haruo está de costas,
auxiliando o pai.
A paixão e o envolvimento de Yoshisuke Oura com o “kendô” era tão grande que ele introduziu o treinamento dessa arte marcial para as crianças da colônia, dedicando a essa atividade quase todo o seu tempo livre.
Neste reinício de atividades, e como fazia desde a chegada ao Brasil, Oura forjava suas espadas usando um único aço (na técnica conhecida como “maru-gitae”), habitualmente obtendo essa matéria-prima de molas da suspensão de caminhões. Posteriormente, por volta do início da década de 1960 e com maiores opções de aços-carbono, Oura passou a utilizar os de procedência alemã e adotou a mais sofisticada técnica “kobuse-gitae”, onde um núcleo de aço-carbono mais mole é envolvido por outro que terá maior dureza após a têmpera.
Devido a falta de profissionais especializados na comunidade (como também ocorreu com “espadeiros” japoneses radicados em outros países), Oura e seu filho Haruo produziam todasas partes que complementam as lâminas japonesas, como “habaki”, “tsuba” e “koshirae” ( ou montagem = bainha + empunhadura e suas furnituras), e tornaram-se também os polidores das mesmas.
DETALHES
Excetuando-se a última lâmina produzida, todas as conhecidas de Oura têm curvatura do tipo “bizen-zôri”, que acentua-se no primeiro terço da lâmina a partir da base.
O “hamon” (linha ou área de têmpera) adotada por Oura foi o “notarê” (“onda”) em diversas variações, sempre com a “hada” (textura de superfície) do tipo “ko-itame”, e grande parte da personalidade de suas lâminas está numa evidente robustez, imediatamente notada quer seja na largura inicial e/ou na espessura generosa.
Os “nakagôs” de suas criações apresentam marcas de lima do tipo “katte-sagari” (sulcos levemente inclinados) e eram assinadas em “kandi”, normalmente com o nome do artesão e, eventualmente, o ano de produção. Foi informado que também existiram assinaturas de Oura revelando o nome do proprietário da lâmina.
Sem qualquer dúvida, o tipo de lâmina mais produzido por Oura foi o “daitô” (ou espada longa), todas as vistas com o formato “shinogui-zukuri” (dois planos), com pontas dos tipos longa (“ô-kissaki”) ou média (“chú-kissaki”), embora o artesão também produzisse habitualmente “wakisashis” (ou espada média) e “tantôs”, estes últimos normalmente no formato “hira-zukuri” (um só plano). Era freqüente ele produzir “daishos” (conjuntos de 2 espadas) para um mesmo cliente
Yoshisuke Oura com cerca de 55 anos e demonstrando toda a sua proximidade com o “kendô”..
.Este foi o último “daito” produzido por Oura, terminado em 1980 e presenteado a seu filho. Note que, ao contrário de suas criações habituais, nesta última lâmina Oura decidiu-se por uma curvatura no estilo “torii-zori” (onde o centro da curva é o meio da lâmina). A inscrição no “nakagô” registra : (na face esquerda) “residente no Brasil – Yoshisuke Oura – aos 75 anos” e (na face direita) “1º mês de 1980”.
Estima-se que Oura produziu em toda a sua carreira entre 50 e 70 lâminas, sendo que apenas cerca de 20% delas deixaram as mãos do artesão abrigadas em montagens completas do tipo “bukezukuri” (literalmente, ao modo da casa dos samurais). Assim, os restantes cerca de 80% do total das produzidas foi abrigado em montagens “shira-saya”. O artesão também recebia com certa freqüência pedidos apenas de lâminas, “habakis” e “tsubas”, que eram colocadas em montagens trazidas do Japão diretamente por alguns clientes.
As “tsubas” consideradas clássicas de Oura são de ferro, forjadas, e “en-suite” com “fuchi” e “kashira”, a maioria delas sempre com a aplicação de pequeninos pontos irregulares de prata, ou de prata e cobre, sobre a superfície. Nas criações do período inicial essas partes foram de ferro, lisas, quando muito com um ou outro desenho bem simples e em baixo relevo.
Os “menukis” de Oura eram de cobre e algo padronizados em sua forma básica, embora possam haver variações dela, a qual se caracterizava pelo desenho, em baixo relevo, de folhas alinhadas na horizontal, com as pontas voltadas para fora e uma pequena flor ao centro. Os “habakis” (ou “colarinhos” da lâmina), também eram de cobre e lisos.
Representação gráfica da “tsuba” – padrão de Oura. Eram de ferro forjado com pontos de prata e cobre em alto relevo. Podem existir variações só com pontos em prata e na forma oval. “Fuchi” e “kashirá” seguiam o mesmo padrão da “tsuba”.
Todas as montagens do tipo “bukezukuri” de Oura tiveram bainha em madeira pintada de negro, empunhadura com “samê” (pele de arraia) verdadeiro e até cerca de 1970 o cordame era de seda ou algodão, itens trazidos do Japão por amigos e parentes. Posteriormente, Oura passou a utilizar cordames produzidos por uma indústria brasileira, que eram em “rayon”, originalmente de cor azul levemente arroxeado, mas que o artesão engraxava de marrom, o que lhes dava aparência de antigos.
Representação gráfica do tipo habitual de “menuki” usado por Oura: basicamente folhas dispostas lado a lado com uma flor no centro, porém com variações tanto na configuração das folhas quanto da flor.
Eram sempre de cobre.
Típico “wakisashi” de Oura. Note a clássica ponta.
ÚLTIMAS ATIVIDADES
No dia 23 de maio de 1970, Yoshisuke Oura foi vítima de um violento acidente de automóvel, fato este que o deixou inativo durante boa parte daquele ano. Parcialmente recuperado, Oura voltou a produzir lâminas, mas não com a mesma freqüência anterior, derivando a maior parte de seu tempo ao aprendizado e exercício das técnicas de acupuntura. Em 1974, Oura foi ao Japão e lá diplomou-se como acupunturista, passando a assistir a comunidade da região de Suzano.
Durante 3 (três) anos, de 1972 a 1975, o Sr. Oura teve como um aplicado discípulo Laerte Ottaiano, de São Paulo (SP), hoje entendido como a maior autoridade da América do Sul em lâminas japonesas, o qual com ele aprendeu técnicas de polimento e depois concluiu seu aprendizado no Japão (veja também o artigo “Polimento de Lâminas Japonesas”).
Típica ponta encontrada nos “daitos” de Oura.
Em 1978, Oura iniciou aquela que ele próprio julgou como a melhor lâmina que já havia forjado, uma robusta criação com curvatura “torii-zori” (no centro da lâmina) e “nagasa” de 72 cm. Essa lâmina excepcional apenas teve seu polimento completado em 1980, quando foi assinada pelo artesão, abrigada numa montagem “shira-saya” e presenteada ao filho Haruo, que a mantém até hoje.
Ainda em 1980, Oura posou para esta foto com seu último “daito”.
Segundo o próprio Oura, esta foi a melhor lâmina que ele produziu. A outra foto mostra seu filho Haruo com a soberba criação.
Desde o ano de 1980, vagarosamente Oura foi se afastando da manufatura de lâminas japonesas e dedicando cada vez mais tempo a outros interesses. Também o filho Haruo passou a dedicar-se mais a atividades culturais da colônia, entre as quais a organização e promoção da Festa da Cerejeira, tradicional festival japonês, o da cidade de Suzano sendo um dos maiores e mais famosos do Brasil. Desde 1986, o Sr. Haruo é membro de muito destaque da Associação Cultural Suzanense e um dos principais organizadores da famosa festa.
No ano de 2000, Yoshisuke Oura faleceu aos 95 anos, deixando não só à colônia japonesa radicada no Brasil mas também para todos os apreciadores brasileiros da boa Cutelaria mais de 60 (sessenta) anos dedicados à produção de lâminas de alta qualidade, além de ter marcado de forma indelével sua passagem pelo “kendô” nacional e ter contribuído no prosseguimento de outras artes de seu país.
Fica assim registrada, com sincero orgulho e carinho, nossa justa homenagem ao “sensei” Oura, o pioneiro na produção comercial de lâminas japonesas no Brasil.
O Sr. Haruo Oura presenteou o autor com algumas das pedras de polimento usadas por seu pai. A pedra da direita é a que Yoshisuke Oura usava para retirar as marcas de lima de suas lâminas antes da têmpera. Um presente inesquecível e que será guardado com muito orgulho e carinho!