TOMIZO ISHIDA E SUAS CRIAÇÕES

Tomizo Ishida e
Suas Criações

O último “espadeiro” de uma linhagem

_____________________________________________________Laércio Gazinhato

Tomizo Ishida pode ser considerado o mais criativo e inovador dos artesãos nipônicos que produziram lâminas no Brasil, tendo sido também amigo pessoal do pioneiro Yoshisuke Oura e do famoso Kunio Oda (veja artigos respectivos em “Textos Selecionados”).

Ishida nasceu em Gumma, bem próximo a Tóquio, em 24 de novembro de 1924, tendo chegado ao Brasil com seus pais em 1933, os quais haviam sido contratados para trabalhar na lavoura de uma fazenda de Mirandópolis, Interior de São Paulo.

Desde sua infância, Tomizo Ishida teve fascinação por espadas japonesas, embora não descendesse de uma família de “espadeiros”. Na fazenda onde sua família trabalhava, frequentemente o menino era visto em busca de retalhos de metal, aos quais adaptava guarda e empunhadura toscas para com eles brincar.

Em 1949, então com 25 anos, Tomizo Ishida resolveu vir para a cidade de Mairiporã (distante cerca de 50 km de São Paulo e já uma colônia japonesa de médias proporções) em busca de um melhor caminho profissional. Poucos anos depois tornou-se relojoeiro e ourives, abrindo seu próprio negócio.

Tomizo Ishida, fotografado no jardim de
sua ampla residência em Mairiporã (SP) e
com a última espada produzida.

Foi em 1962 que Ishida decidiu produzir espadas japonesas, quando viu toscos exemplares do tipo confeccionados por um brasileiro e pensou: “Posso e vou faze-las melhor!”. Assim, de forma amadora e ainda sem grandes conhecimentos de antigas tradições, iniciou a produção de “katanás”, “wakisashis” e “tatchis”, no começo baseando-se apenas em livros que parentes do Japão lhe enviavam. Posteriormente, teve contato prático com Oda e Oura.

Ao longo dos próximos anos, Ishida se tornaria conhecido não só por forjar boas lâminas, mas também por produzir furnituras (“tsubas”, “fuchis”, “kashiras” e “menukis”) e bainhas bem vistosas, itens estes que, até o momento, podem ser considerados os mais aprimorados dentre aqueles oferecidos pelos “espadeiros” japoneses radicados no Brasil.

Típíco “daisho” de Tomizo Ishida.

INOVAÇÕES

Tomizo Ishida foi – desde o início de sua atividade de “espadeiro” – muito inovador em suas criações, tendo desenvolvido uma linha própria de trabalho, interpretando as espadas clássicas japonesas e adaptando-as ao seu estilo e experiência pessoal como praticante de Iai-do. Assim, a maioria das criações de Ishida fugiu de algumas regras convencionais e ortodoxas que essas clássicas espadas têm. Entre as mudanças destacam-se:

  • o orifício da passagem do pino (“mekugi-ana”) que trava a lâmina é sempre colocado um pouco mais para trás do que o habitual. Dentro da geometria de suas lâminas, Ishida entendia que isto as travava de forma melhor, mais “sólida”;
  • a espessura da lâmina é levemente menor e a largura pouco maior do que os padrões tradicionais. O artesão entende que os aços modernos são naturalmente melhores e, como praticante de Iai, sempre prezou muito o adequado peso e equilíbrio de uma boa lâmina;
  • a linha de têmpera é mais alta do que o convencional. Alguns “espadeiros” modernos do Japão também adotaram essa técnica a partir de 1960, quando lá reiniciou-se oficialmente a produção de espadas; com isso, eventuais pequenos “dentes” da lâmina poderão ser retirados no re-polimento sem diminuição consistente da área temperada;
  • em algumas criações especiais ou para uso pessoal, o primeiro “seppa” (espaçador), aquele na junção entre a empunhadura e a “tsuba”, é em couro laqueado. Segundo Ishida, o objetivo é amortecer mais as vibrações ocasionadas por golpes, as quais são passadas para as mãos do usuário.

A década de 1970 e o começo dos anos 80 foi seu período de maior produção, onde além de atender pedidos diretamente, também revendia suas criações em lojas selecionadas do tradicional bairro paulistano da Liberdade, principal reduto da colônia japonesa em São Paulo desde o início do século 20. Naquela época, as furnituras e bainhas de suas criações eram simples, lisas, seguindo o padrão então adotado na maioria dos exemplares produzidos pelos colegas Oura e Oda. Embora já de preço razoável, suas espadas
com freqüência decoravam as
vitrines da famosa loja MiniKimono.

Este “wakisashi” foi uma das criações iniciais de Ishida, tendo sido
presenteado ao filho mais velho em 1968. A exceção da posição do pino que
prende a lâmina, note que as furnituras da empunhadura e a bainha ainda
seguem linhas muito tradicionais. Sua lâmina, evidentemente mal
conservada, será re-polida pelo artesão.

Foi justamente nas vitrines dessa loja que um dia no inicio da década de 1970 Ishida viu grande e imponente“tsuba” original antiga, naquele momento decidindo que as furnituras de suas criações tinham que ser mais refinadas. Era uma “tsuba” de bronze, original do último terço do Período Edo (1603 – 1868), no formato “mokko”, com lindo desenho de um dragão em alto relevo e estava à venda por US$ 1,000.00, valor que na época Ishida não tinha condições de pagar. Falando com o dono da loja, ele conseguiu o nome e endereço do proprietário (que era um marceneiro nipônico residente na cidade de Guarulhos, Grande SP) e o procurou propondo-lhe a troca da linda “tsuba” por um de seus “katanás”, o qual teria uma cópia exata dela. O homem aceitou e desde então Ishida desenvolveu toda uma linha e estilo próprios de furnituras. Daquela pioneira “tsuba” original foram magistralmente executadas apenas 3 (três) cópias: uma para a espada do marceneiro, uma que Ishida usou posteriormente em um “tatchi” e a mostrada neste artigo, que foi por ele presenteada ao autor.

 

Rara cópia da famosa “tsuba” do dragão, cuja original
serviu de inspiração para Ishida iniciar toda uma linha
de produção de furnituras mais sofisticadas.
Suas dimensões são de 8,2 X 7,8 cm.

Linhas clássicas e aprimoradas neste “daito” pessoal de Ishida.

DETALHES

Assim como Kunio Oda, Ishida forjava suas espadas na técnica “maru-gitae” inicialmente usando aço carbono 1045, mas posteriormente passou a usar aço do tipo RCC (designação comercial; equivalente ao atual VC-130) por seu maior conteúdo de carbono.

A criatividade de Ishida também podia ser observada no “hamon” de suas lâminas, pois o artesão o produzia em 3 (três) tipos: “gunomê” (sucessão de picos irregulares” , “notarê” (ondas) e “suguhá” (quase reto)

“Hamon” de Ishida. Este é do tipo “notarê” e, como todos os demais do artesão, algo mais alto.

Nas furnituras que decidiu produzir, a preferência de Ishida recaiu naquelas de estilo algo primitivo, rústicas mas muito robustas, a maioria delas sendo de latão fundidas a partir de moldes que o próprio artesão, como ourives que era, executou baseando-se em originais antigos. A marcante preferência do artesão por motivos de dragões era revelada nas “kashirás” (pomos) e nos “menukis”. Os “fuchis” (calços) com a figura de um sábio japonês lendo escrituras sagradas foram uma constante a partir do final da década de 1970.

“Kashirá” e “fuchi” típicos das mais refinadas criações de Ishida. São em bronze,
com acabamento envelhecido.

Ainda por ser praticante de Iai-do, Ishida desenvolveu especial predileção pela manufatura de “uchigatanás” (literalmente, espadas de combate), com lâminas de comprimento entre 53 e 62 cm, e é neste tipo que encontram-se algumas de suas mais refinadas criações.

Para seus “uchigatanás”, Ishida chegou a desenvolver uma “tsuba” própria, em latão, inspirada numa original muito antiga, a qual acabou tornando-se uma das preferidas da clientela, posteriormente sendo também usada em “daitôs” e em raros “wakisashis”. Embora obtida por boa fundição, os detalhados desenhos de flores, folhas, bambús (que por vezes tornavam-se feixes de palha) e a rede de pesca vazada em cerca de 50% de sua área exigiam do artesão demorado e detalhado trabalho de retoque. Em minha opinião, esta foi a melhor “tsuba” produzida por um “espadeiro” japonês radicado no Brasil, até agora.

Seus “habakis” (ou “colarinhos” das lâminas) são sempre de cobre, lisos, imediatamente reconhecidos por generosa espessura e um pronunciado chanfrado na parte dianteira, para facilitar sua entrada na bainha.

Tsuba”-padrão de Ishida. Dimensões de 7,1 X 6,5 cm.

Ishida usou tanto “samê” (pele de arraia) importado quanto nacional e era relativamente freqüente o artesão tratar os de granulação fina com laca dourada em técnica similar a usada no Japão feudal para montagens de alto luxo, o que lhes concedia uma aparência mais destacada. Entretanto, Ishida apenas usou fitas importadas, de seda ou algodão, mas a maioria na cor negra.

A quase totalidade das criações de Ishida apresenta montagens completas, do tipo “bukezukuri” (literalmente, ao modo da casa dos samurais).

Ao contrário das bainhas da fase inicial, só negras, pintadas, criações das fases intermediárias (a partir de 1978) e final as apresentam em lacas de cores variadas, mas com nítida preferência pela aplicação de grânulos pequenos e esparsos de purpurina multicolorida, também como algumas originais antigas de alto luxo.

 

Típico “menuki” das espadas de Ishida, um detalhado dragão banhado a ouro.
No “samê”, note o acabamento em laca dourada.

Ishida apenas assinou criações cuja lâmina tivesse o desenho de um detalhado dragão numa das faces, lavração que ele mesmo executava a buril. Na maioria das demais criações, usou marcas de lima do tipo “katte-sagari” (levemente inclinadas), em “nakagôs” cujas formas eram, na maioria dos casos, comuns (“futsu”), com cortes terminais em “V” irregular (“Iri-Yamagáta”) ou em linha reta (“kiri”).

Lavração de dragão similar às raras com essa apresentação executadas por Ishida.

AMIGOS & PRODUÇÃO

Tendo viajado ao Japão na metade da década de 1980, Ishida voltou trazendo um presente especial para seu amigo Kunio Oda: a linda e detalhada réplica de uma “tsuba” antiga com figuras de cegonhas.

Oda apreciou tanto o presente que usou essa “tsuba” como molde para réplicas em latão que oferecia a seus clientes como mais uma opção, e que acabaram tornando-se uma das preferidas na linha do artesão, sendo que o próprio Ishida chegou a montar algumas lâminas de “katanás” com elas. Os dois artesãos eram muito amigos apesar de concorrentes e não raro Ishida fornecia carvão para a forja de Oda.

Yoshisuke Oura considerava Ishida como um discípulo forjador e o tratava com respeito , sendo também frequentes os cumprimentos pela alta qualidade de suas bainhas e o desenvolvimento de furnituras elaboradas. Quando Oura faleceu em 2000, uma das coisas que legou a seu filho Haruo foi um conjunto de 3 (três) “tsubas” especialmente confeccionadas por Ishida e que dele havia ganho.

Réplica japonesa da “tsuba” de cegonhas, 7,8 X 7,4 cm, presenteada por Ishida a Kunio Oda e hoje na posse do autor.

A última espada produzida por Ishida foi este requintado e imponente “uchigataná”. Tem lâmina com o comprimento de 61 cm e foi terminado em 1992 , inicialmente para uso pessoal, mas adquirido – após muita insistência – pelo autor. Nesta criação, Ishida optou por um “nakagô” no incomum formato “kijimomo”, ou coxa de faisão. Sua bainha é de laca vermelha e o “samê” da empunhadura foi especialmente tratado com laca dourada.

Em 1988, com as comemorações oficiais dos 80 anos da imigração japonesa para o Brasil, Ishida foi comissionado pelos organizadores das festividades para confeccionar uma espada alusiva ao fato. O artesão forjou então uma soberba lâmina e para ela projetou uma montagem totalmente executada em bambú e com fitas de couro, como algumas raríssimas originais pós-1860. Essa inusitada criação ficou exposta durante boa parte daquele ano no famoso
“bunkyo” da Associação
Cultural Japonesa, no bairro
paulistano da Liberdade.

Espada de Ishida especialmente preparada para as comemorações oficiais dos 80 anos
da imigração japonesa para o Brasil. “Nagasa” de 78 cm.

A partir do final da década de 1980, Tomizo Ishida diminuiu muito a produção de lâminas, vindo a encerrá-la oficialmente em 1992, e atualmente ele e sua igualmente gentil esposa, dona Luzia Misao Ishida, vivem tranquilamente na ampla e agradável residência que – com muito esforço – construíram na pacata cidade paulista de Mairiporã. Entretanto e de forma excepcional, a partir do final de 2004 Ishida voltou a produzir lâminas de forma esporádica, as de “kataná” tendo seu preço inicial ao redor de US$ 1,500.00.

O próprio Ishida estima que – em sua primeira fase – produziu cerca de 350 espadas e informou que de tanto forjar lâminas durante longos períodos sem interrupção comprometeu muito a audição de um dos ouvidos. O artesão teve 3 (tres) filhos homens, mas nenhum seguiu a profissão do pai.

Vitrine com “ken” executado por Ishida em 1982 e que, juntamente com outras criações, era sempre levada às exposições em que o artesão participava. “Ken” é um tipo inicial de espada japonesa, ainda com forte influência chinesa e lâmina reta de duplo fio, produzida até o século 9.

Em 1991, ele e sua esposa foram agraciados pela sociedade japonesa no Brasil com os títulos de comendadores grã-cruz por sua contribuição às artes nipônicas e ao panorama da acupuntura no Brasil, tendo também muito se destacado nessa atividade terapêutica, inclusive tratando com ela o famoso artista plástico Manabu Mabe.

Por 30 (trinta) anos ininterruptos Tomizo Ishida ofereceu lâminas e montagens de muito boa qualidade e por este fato pode ser considerado como o 3º mais renomado artesão japonês que produziu espadas em nosso país.

Tomizo Ishida e esposa quando receberam suas comendas por serviços prestados à colônia japonesa de São Paulo.

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